Conheci o Markiano quando militávamos no CEAPPD, durante a gestão de Mário Covas.
Ele representava os cegos e eu, os surdos. Trabalhamos assiduamente por dois
mandatos, isto é, durante quatro anos, quando Mário Covas faleceu e Alckmin
assumiu o governo.
Não, nós não trabalhávamos para o governo! É
apenas uma referência ao nosso mandato como Conselheiros naquele órgão que tem a incumbência de propor, delegar, fiscalizar as políticas públicas na área das deficiências, enquanto representatividade no Estado.
Lembro-me que, quando das extensas reuniões que
havia, muitas vezes cansativas devido à pauta interminável e, por
falta de tempo, nós quase não falávamos de coisas banais. Então ocorria que, vez
ou outra, tirávamos sorte de um sentar perto do outro e trocar fofoquinhas. Era
muito divertido porque, sendo ele um cego, não podia enxergar a minha boca e
fazer a leitura labial (que eu tirava a vantagem de poder falar sem o som,
gesticulando com os lábios para ninguém ouvir). E eu, sendo surda, não podia
captar o cochicho baixinho dele no meu ouvido, pois eu tinha que ler de frente o que ele
dizia...
Com ele precisando ouvir, e eu, enxergar, a nossa
fofoca se tornava cômica e pública... Sempre tinha alguém lendo meus lábios e ouvindo o
que ele dizia, e todos ríamos da situação, da sua confusão
natural.
Inclusive, contei a ele que eu tinha dificuldades
de ajudar pessoas com deficiência visual na rua, isso porque, se eu desse os
ombros ou o braço para guiar algum deles, estes se punham a puxar conversa pelo
caminho e eu não conseguia (como não consigo ainda hoje) "conversar andando",
que significa andar olhando para a face do outro para entender sua mensagem e ter que tirar os olhos do chão. Na certa seria um tropeção ou um tombo em dose dupla.
É, eu também costumo pegar no braço das pessoas que
me acompanham pela rua para me apoiar caso esteja conversando porque isso evita o perigo. Afinal, nossos olhos veem
numa única direção.
E o Markiano se divertia com as tiradas.
O tempo passou e o perdi de vista, até encontrá-lo meio ao acaso pelas redes sociais.
O tempo passou e o perdi de vista, até encontrá-lo meio ao acaso pelas redes sociais.
E teve um dia que ele falou ali algo bem simples,
mas até então desconhecido para mim. Causou admiração e foi o motivo para este
post, já que é um fator decisivo e pertinente à inclusão de que tanto falo. Ele
havia dito que transferira para a noite a sua ida à igreja que costuma frequentar, pois
tinha o compromisso de fazer uma leitura naquela celebração.
Rebobinei a fita na hora: ELE TINHA QUE FAZER UMA
LEITURA?
Que legal, UM CEGO FAZENDO LEITURA NA MISSA!!! Alguém já viu esse filme?
Se já, parabéns! Viu primeiro que eu, que com toda a
bagagem adquirida, ainda não tive esse prazer.
Tratei logo de entrar em contato com ele prá matar
a curiosidade. Queria saber como a coisa funciona na igreja que ele participa,
pois a inclusão também anda a passos muito lentos nas igrejas, independente de
credo. E ele respondeu que, infelizmente, não
havendo ainda a acessibilidade aos cegos nos folhetos nas missas, durante a
semana alguém lê para ele o texto bíblico e, simultaneamente, ele transcreve para uma folha na
máquina braile e utiliza esse texto para a leitura durante a celebração.
Mesmo sem acessibilidade, ele faz sua parte.
E me pus a imaginar uma celebração religiosa, onde
um cego que se coloca sobre o altar, no momento da proclamação da Palavra de
Deus, não através do usual percorrer de olhos sobre o livro litúrgico, mas de
uma transmissão de mensagem pelo suave discorrer de dedos sobre folhas em
branco, apenas salpicadas de pontinhos em relevo...
"Mas ele é cego para que nele se manifestem as
obras de Deus” João 9,3ss... Faz pensar a vida!
Daí, o Markiano devolveu-me a sua pergunta, se na igreja que
frequento, consigo acompanhar bem com o folheto, se consigo visualizar a
mensagem labial dos leitores e do padre.
Respondi a ele que na minha diocese, infelizmente,
foi abolido o folheto (já me rebelei contra isso), e que hoje adquiro o livreto
que contém a liturgia do mês, e me direciono por ela. Quanto a entender os
leitores e o padre, procuro me sentar sempre nos bancos da frente e improviso.
Sorte que o padre na hora da exortação, ele desce do altar e fica no meio do
povo, isso permite um colóquio mais acessível e contribui para a edificação.
O único intruso, "senhor microfone", que
é essencial para a assembleia, continua sendo um entrave para mim, como também aos
surdos oralizados...
(Texto escrito em junho/2011, extraído do antigo blog Inclusão & Sagrado).
Pela Inclusão e pela Vida!
(Texto escrito em junho/2011, extraído do antigo blog Inclusão & Sagrado).
Pela Inclusão e pela Vida!
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