PRETENSÃO

Ampliar os horizontes da inclusão é a pretensão deste blog. E inclusão não apenas entendida como movimento de pessoas com deficiência, senão também abordar a ecologia, os movimentos de luta por direitos e cidadania, etc. Falar de inclusão, portanto, significa acolher o meio e todas as pessoas. Significa também respeitar e tolerar a singularidade, fazendo da compreensão uma forma de convivência pacífica e plural. Na inclusão ninguém pode ficar de fora!

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

LEITURA NA PONTA DOS DEDOS



Conheci o Markiano quando militávamos no CEAPPD, durante a gestão de Mário Covas. Ele representava os cegos e eu, os surdos. Trabalhamos assiduamente por dois mandatos, isto é, durante quatro anos, quando Mário Covas faleceu e Alckmin assumiu o governo.
Não, nós não trabalhávamos para o governo! É apenas uma referência ao nosso mandato como Conselheiros naquele órgão que tem a incumbência de propor, delegar, fiscalizar as políticas públicas na área das deficiências, enquanto representatividade no Estado.
Lembro-me que, quando das extensas reuniões que havia, muitas vezes cansativas devido à pauta interminável e, por falta de tempo, nós quase não falávamos de coisas banais. Então ocorria que, vez ou outra, tirávamos sorte de um sentar perto do outro e trocar fofoquinhas. Era muito divertido porque, sendo ele um cego, não podia enxergar a minha boca e fazer a leitura labial (que eu tirava a vantagem de poder falar sem o som, gesticulando com os lábios para ninguém ouvir). E eu, sendo surda, não podia captar o cochicho baixinho dele no meu ouvido, pois eu tinha que ler de frente o que ele dizia...
Com ele precisando ouvir, e eu, enxergar, a nossa fofoca se tornava cômica e pública... Sempre tinha alguém lendo meus lábios e ouvindo o que ele dizia, e todos ríamos da situação, da sua confusão natural.
Inclusive, contei a ele que eu tinha dificuldades de ajudar pessoas com deficiência visual na rua, isso porque, se eu desse os ombros ou o braço para guiar algum deles, estes se punham a puxar conversa pelo caminho e eu não conseguia (como não consigo ainda hoje) "conversar andando", que significa andar olhando para a face do outro para entender sua mensagem e ter que tirar os olhos do chão. Na certa seria um tropeção ou um tombo em dose dupla.
É, eu também costumo pegar no braço das pessoas que me acompanham pela rua para me apoiar caso esteja conversando porque isso evita o perigo. Afinal, nossos olhos veem numa única direção.
E o Markiano se divertia com as tiradas. 
O tempo passou e o perdi de vista, até encontrá-lo meio ao acaso pelas redes sociais.
E teve um dia que ele falou ali algo bem simples, mas até então desconhecido para mim. Causou admiração e foi o motivo para este post, já que é um fator decisivo e pertinente à inclusão de que tanto falo. Ele havia dito que transferira para a noite a sua ida à igreja que costuma frequentar, pois tinha o compromisso de fazer uma leitura naquela celebração.
Rebobinei a fita na hora: ELE TINHA QUE FAZER UMA LEITURA?
Que legal, UM CEGO FAZENDO LEITURA NA MISSA!!! Alguém já viu esse filme?
Se já, parabéns! Viu primeiro que eu, que com toda a bagagem adquirida, ainda não tive esse prazer.
Tratei logo de entrar em contato com ele prá matar a curiosidade. Queria saber como a coisa funciona na igreja que ele participa, pois a inclusão também anda a passos muito lentos nas igrejas, independente de credo. E ele respondeu que, infelizmente, não havendo ainda a acessibilidade aos cegos nos folhetos nas missas, durante a semana alguém lê para ele o texto bíblico e, simultaneamente, ele transcreve para uma folha na máquina braile e utiliza esse texto para a leitura durante a celebração.
Mesmo sem acessibilidade, ele faz sua parte.
E me pus a imaginar uma celebração religiosa, onde um cego que se coloca sobre o altar, no momento da proclamação da Palavra de Deus, não através do usual percorrer de olhos sobre o livro litúrgico, mas de uma transmissão de mensagem pelo suave discorrer de dedos sobre folhas em branco, apenas salpicadas de pontinhos em relevo...
"Mas ele é cego para que nele se manifestem as obras de Deus” João 9,3ss... Faz pensar a vida!
Daí, o Markiano devolveu-me a sua pergunta, se na igreja que frequento, consigo acompanhar bem com o folheto, se consigo visualizar a mensagem labial dos leitores e do padre.
Respondi a ele que na minha diocese, infelizmente, foi abolido o folheto (já me rebelei contra isso), e que hoje adquiro o livreto que contém a liturgia do mês, e me direciono por ela. Quanto a entender os leitores e o padre, procuro me sentar sempre nos bancos da frente e improviso. Sorte que o padre na hora da exortação, ele desce do altar e fica no meio do povo, isso permite um colóquio mais acessível e contribui para a edificação.
O único intruso, "senhor microfone", que é essencial para a assembleia, continua sendo um entrave para mim, como também aos surdos oralizados...

(Texto escrito em junho/2011, extraído do antigo blog Inclusão & Sagrado).


Pela Inclusão e pela Vida!



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