Voar voar, subir subir ir por onde for
Descer até o céu cair ou mudar de cor...
(Sonho de Ícaro)
Depois daquele dia, voltamos a nos encontrar com mais frequência. Passei a reparar mais no seu jeito, seu olhar, suas mãos...
E ele também passou a notar
minha presença a cada vez que nos encontrávamos ali. Resolvi ser mais comedida
nas abordagens, no sorriso, nos breves cumprimentos. Respeitar o espaço, o ser,
o agir em seus altos e baixos, ora sereno, ora agitado.
Se não o avistasse na chegada, tinha certeza que poderia vê-lo na hora do almoço. Ali, o horário da refeição é um ritual tão sagrado.
Encontrei-o quando saía do refeitório. Ele estava sentado na beirada de um dos bancos dispostos na alameda. Sob a sombra de árvores que nunca me arrisco
abrigar, devido à enorme quantidade de lagartas que caem sobre algum desavisado.
Dei-lhe um sorriso e, pela
primeira vez, recebi outro de volta. Observei-o melhor e notei que havia
raspado a cabeça. Tinha também uma cicatriz recente na parte inferior do crânio.
Um tombo? Uma briga? Talvez um acesso de convulsão, típico de seu quadro
neurológico.
E ele estava tão feliz que
foi possível descobrir o motivo daquela felicidade. Mesmo que lhe perguntasse
qual a razão, ele nunca responderia, afinal suas respostas não passam de pouquissímas palavras.
A seu lado estava a inseparável
lata pintada, envolta pela volumosa linha branca sem cerol. O que completava
sua alegria desta vez era a pipa colorida amarrada grosseiramente na ponta da linha e
deitada sob o chão. Sim, era ela a razão daquele brilho em seu olhar!
- Que legal, disse-lhe.
Agora você tem uma pipa!
Ele abaixou a cabeça e
sorriu timidamente. Olhou então para o lado e fez um sinal para o amigo que chegava
cambaleante e apressado em sua direção. Este, com toda a dificuldade
motriz, ajoelhou-se e apanhou a pipa com uma das mãos enquanto a outra se
apoiava no chão, de modo a manter o equilíbrio do corpo. Levantou-se
ansiosamente e foi logo se afastando dali, como que a ganhar distância para que
o objeto planasse, ganhando os ares.
Admirei-me com aquilo tudo,
depois de observar dois seres como tantos que estão na casa, tão unidos e tão
distantes ao mesmo tempo. O que os une? O que separa? A deficiência, os
distúrbios? O atraso cognitivo? Tão similares e puros naquele desejo de compartilhar
uma brincadeira, como a duas crianças, e ainda, destrutivos a ponto de se
machucarem, inconscientemente.
Mistério...
Mistério...
A pipa não subiu. Talvez nem
suba!
O prazer está na lata. E
também na pipa. A descoberta e o manuseio constante de aquele enrolar e desenrolar,
funcionando como que uma terapia, deixa-o tão absorto e feliz.
Simples assim...
Simples assim...
Ah, vida! Viver um dia de
cada vez, com suas dores e alegrias.
Pela Inclusão e pela Vida.
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