Não sei onde nem quando
ocorreu aquele achado. Enquanto pressionava o controle remoto sobre o botão de
canais, passei por ali e segui adiante, mas quando vi que se tratava de um
programa legendado, voltei rapidamente para observar melhor seu conteúdo.
Estava quase no final, o bastante para ver que tratava sobre os caminhos da
inclusão.
Pelo modo de gesticular os
lábios, pessoas falavam espanhol. O documentário apresentava um ônibus
itinerante que percorria tal país, parando de quando em vez em alguma cidade e
oferecendo cursos culinários para pessoas com deficiência visual. A cada final
de aula o ônibus transformava-se em restaurante e abria as portas para a
comunidade provar a comida feita por seus alunos cegos.
Uma fila de crianças,
adolescentes e idosos se formava ali fora para o almoço. No cartaz afixado dizia
que a refeição seria servida aos fregueses com olhos vendados, de modo que
experimentassem como é feita a refeição por uma pessoa cega. Assim, a venda era
colocada antes de se adentrar no ônibus e retirada só na saída.
Como peguei a programação
andando, vi duas mulheres cegas preparando uma massa na tigela, tateando com
delicadeza e também com receio uma covinha central feita na farinha, para ali
colocar os ovos, depois o fermento, depois o óleo e, finalmente, ir sovando o
produto de seu aprendizado... Alguém já pensou nisto? Sentir a leveza da
farinha, a maciez da gema e a liga da massa sendo trabalhada nas mãos, sem o
olhar?
Lembrei-me da primeira vez em
que fui testar o forno de micro-ondas e resolvi fazer um franguinho assado. De
sabor até que não ficou tão ruim. Só não tinha beleza nenhuma: ficou branco tal
como se estivesse cru. Nunca mais repeti o feito. Isto porque, nós videntes, comemos com os olhos! Dizem que as filhas aprendem a cozinhar na mesma panela
da mãe. Concordo até em parte, mas tenho uma forma de cozinhar própria, pouco
diferente do modo de minha mãe. As carnes, por exemplo, quando se trata de
adquirir cor, ela deixa cozer muito mais tempo que eu. Questão de gosto.
Ao final da degustação, uma
pesquisadora quis saber a opinião dos participantes, tanto dos fregueses em
relação à comida quanto dos alunos no seu preparo. Quem provou do almoço
relatou que ficou inseguro no início, bem como da dificuldade de manusear os
talheres no prato, sendo necessário fazê-lo mais devagar que o normal sob o
risco de se machucarem com o garfo. Outros, relataram que sentiram seus olfatos
mais aguçados e isto atiçava o paladar. E ainda houve quem dissesse que a venda
nos olhos fez com que as pessoas falassem mais alto e aguçassem a audição
naquela escuridão.
Bonito mesmo foi ver a
reação daqueles cozinheiros especiais ao final do programa, num misto de
surpresa, euforia e realização pessoal no preparo de pratos simples, mas
caprichados, sob a orientação de cozinheiros gabaritados para acompanhá-los por
todo o ambiente da cozinha como atividade de vida diária, que muitas vezes é
visto pelos próprios cegos como o mais perigoso, dada a imensa variedade de
utensílios e apetrechos, desestimulando-os em arriscar um novo prato.
Vitória e superação...
.-.-.
“Jesus
e seus discípulos chegaram a Betsaida. Algumas pessoas trouxeram-lhe um cego e
pediram a Jesus que tocasse nele. Jesus pegou o cego pela mão, levou-o para
fora do povoado, cuspiu nos olhos dele, colocou as mãos sobre ele e perguntou: ‘Estás
vendo alguma coisa?' O homem levantou os olhos e disse: ‘Estou vendo os homens.
Eles parecem árvores que andam’. Então Jesus colocou de novo as mãos sobre os
olhos dele e ele passou a enxergar claramente. Ficou curado e enxergava todas
as coisas com nitidez.” (Marcos 8,22-25)
Pela Inclusão e pela Vida.
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