PRETENSÃO

Ampliar os horizontes da inclusão é a pretensão deste blog. E inclusão não apenas entendida como movimento de pessoas com deficiência, senão também abordar a ecologia, os movimentos de luta por direitos e cidadania, etc. Falar de inclusão, portanto, significa acolher o meio e todas as pessoas. Significa também respeitar e tolerar a singularidade, fazendo da compreensão uma forma de convivência pacífica e plural. Na inclusão ninguém pode ficar de fora!

terça-feira, 30 de janeiro de 2018

A HISTÓRIA CONTADA E RECONTADA



Hospital Padre Bento em foto antiga - Google imagens


"Muito já foi falado e muito ainda se falará a respeito da segregação de que foram vítimas, a partir das décadas de 30 e 40, milhares de pessoas atingidas pela hanseníase, doença conhecida há quatro mil anos, que lotaram os cinco sanatórios, então denominados "leprosários" de São Paulo, bem como os demais do Brasil.

A medicina na época trabalhava com um único cenário a respeito de uma enfermidade infecto contagiosa, com alta carga de preconceito e incurável, por isso o viés profilático.

Tudo era feito em função do doente, para o bem e para o mal, eis que a enfermidade era um fator indefinido, neutro, por inexistir cura, daí a política do Departamento de Profilaxia da Lepra (como era denominado o programa à época) de se concentrar apenas na pessoa do portador. O plano de captura, uma espécie de arrastão, rapidamente encheu os asilos-colônias, sendo que o Sanatório Padre Bento, fundado em 05.06.1931, tinha sido o único a se destacar dos demais, a começar pela não denominação de asilo e por estar próximo à Capital, em Guarulhos. Havia sido escolhido como cartão postal aos olhos das autoridades sanitárias, como também para satisfação da elite paulistana, que foi quem pressionou o governo para a rápida construção de "leprosários". As edificações eram feitas para durar anos, os carvilles (pavilhões coletivos), as moradias para os casais, o Teatro Padre Bento, inaugurado em 05 de junho de 1935, obra consistente de arquitetura magnífica chamava a atenção pelo fato de que eram raras as cidades interioranas que possuíam algo parecido. Reinaugurado em 08 de dezembro de 2007, depois de passar por uma reforma e restauro por conta do poder municipal. É reconhecida como símbolo da cidade, por ter sido o primeiro teatro construído em Guarulhos.

Retomando, a ação de busca, então empreendida pelo departamento de profilaxia da lepra ao doente e ao suspeito da doença, prosseguia de forma ininterrupta, e a família que tinha o seu membro levado para o sanatório ficava marcada; a vizinhança se retraía por força do preconceito e, das duas uma: ou a família se mudava do local ou, permanecendo, teria de reunir forças o bastante para se manter articulada. A família e o autor deste texto (Wilson, nome fictício), então com 13 anos de idade, quando aumentaram os comentários bem como a pressão dos seus parentes, se mudaram do interior de São Paulo para a cidade de Uberaba, Minas Gerais; tendo o seu pai em seguida o levado para ser internado no Asilo-colônia Cocais, no município de Casa Branca, São Paulo, em 1941. Lá permaneceu por oito anos.

Não há dados de quantas famílias foram desestruturadas, sabe-se apenas que a pessoa deixava a esposa ou esposo e filhos por tempo indeterminado por ser a cura uma utopia, por isso ela se juntava a alguém, vivendo em concubinato. Jovens noivavam e se casavam e os filhos que nasciam não podiam ficar com os pais, ou era enviado para os parentes, caso contrário, o departamento de profilaxia da lepra os encaminhava para o Preventório em Jacareí, São Paulo, uma instituição governamental criada no Vale do Paraíba, especialmente para tal finalidade.

Com a chegada da sulfa ao Brasil, trazida dos EUA, em 1945, pelo médico e primeiro diretor do Sanatório Padre Bento, Lauro Souza Lima, o tratamento levou à tão sonhada cura, ao mesmo tempo em que se repetia, mas de maneira inversa, o episódio da desinternação. Para um contingente que permaneceu segregado por tanto tempo, cujos laços familiares se desfizeram, ou foram abalados, não se sabia como seria o retorno com as condições psicológicas fragilizadas. O governo em nenhum momento, nem quando da internação, se voltou para um trabalho de fortalecimento da sua autoestima, mesmo ciente de que seria difícil a reintegração na comunidade.

Wilson obteve alta ao final de 1949, indo morar com a mãe e a irmã em São Paulo, onde, dois anos atrás, haviam deixado Uberaba, mas desta vez sem o seu pai, que havia se desligado da família. Sua readaptação ao meio não foi fácil, diversas vezes pensou em retornar, mas como, se estava de alta? Com o incentivo constante de sua mãe começou a sair de casa a procura de serviço quando, depois de um ano, começou a trabalhar numa marcenaria, profissão que havia aprendido quando interno em Cocais. À medida que o tempo passava, mais confiança adquiria e mais sólida era sua reintegração na sociedade quando, passados sete anos, foi acometido de uma recidiva (reativação da doença) e reinternado em 1957, mas no Sanatório Padre Bento e obtendo alta em 1962, período em que se casou, indo morar próximo ao sanatório.

No início dos anos 50, muitos que estavam saindo de alta do "Padre Bento" foram comprando terrenos na Vila Tranquilidade e construindo suas casas, então um bairro que relutava em se desenvolver devido ao estigma que ganhou corpo. Tal quais pioneiros enfrentando adversidades, parece que tinham consciência que a Vila Tranquilidade seria uma espécie de santuário de um conglomerado de egressos, inclusive de outros "leprosários" do Estado, uma realidade que pouco a pouco foi aplainando o caminho para a tão desejada reintegração. A Vila Tranquilidade em 20 anos se transformou; também nos bairros próximos ao Padre Bento eram muitos os moradores egressos que tinha ele como referência, mas a atendimentos e internações intercorrentes de portadores de sequelas que, mesmo curados da doença, precisavam de cuidados.

Este texto retrata um pouco a história surrealista perversa, vivida por personagens oriundos da classe pobre, por ser esta doença uma característica da pobreza, uma política sanitária sem precedentes cuja aplicação somente foi possível graças ao período discricionário imposto ao Brasil pela ditadura Vargas".



(O amigo, autor do relato acima mantém o anonimato. Homem destemido, está vivo e é atuante no movimento, mesmo com a idade avançada. E sempre disposto a recontar sua história como forma de combater a doença tão presente no País, infelizmente, como também o preconceito.)



PELA INCLUSÃO E PELA VIDA!



 

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